O notável compositor Assis Valente
Por Patrícia Rodrigues
O compositor Assis Valente sabia, como ninguém, retratar a vida carioca. Viveu numa época em que as composições musicais tinham grandes qualidades artísticas, com letras cheias de poesia e lirismo. Com sambas repletos de bom humor, tornou-se um dos compositores preferidos da cantora Carmen Miranda. Assis Valente destacou-se também como um dos primeiros autores a criar músicas para festas juninas, como “Cai, cai balão”, gravado por Francisco Alves e Aurora Miranda.
Seu nome de batismo era José de Assis Valente. Nasceu no dia 19 de março de 1908, na Bahia. Teve uma infância muito difícil. Foi criado por pais adotivos, que mais tarde mudaram para o Rio de Janeiro e o deixaram em Salvador. Sozinho, começou a trabalhar muito cedo. Conseguiu emprego na farmácia de um hospital. Trabalhava durante o dia e estudava à noite. Estudou desenho e escultura no Liceu de Artes e Ofícios da Bahia e ao mesmo tempo aprendeu o ofício de protético. Seus primeiros desenhos foram publicados na revista Renascença. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1927, onde começou a trabalhar como desenhista e protético. Alguns de seus desenhos foram publicados nas revistas Fon Fon e Shimmy. Em 1932, Assis Valente conheceu o compositor Heitor dos Prazeres, que o levou para a música. No mesmo ano, teve sua primeira composição gravada pela cantora Araci Côrtes: “Tem francesa no morro”.
Foi também em 1932 que Assis Valente conheceu Carmen Miranda. A beleza e o jeito de cantar de Carmen encantaram o compositor. Era a intérprete que ele precisava. Na tentativa de se aproximar dela, foi ter aulas de violão com Josué de Barros, o descobridor da cantora. Mas Carmen não estudava com Josué de Barros, como ele imaginava. Um dia tomou coragem e foi ele mesmo procurar a Pequena Notável e lhe apresentar um samba. Carmen gostou e lançou a música “Etc”, na Rádio Mayrink Veiga e logo depois a gravou.
Para o mesmo disco, Assis compôs a marcha “Good bye boy”, uma sátira ao modismo de falar inglês no Brasil. Carmen prometeu lançar a música em um espetáculo de variedades dirigido por Francisco Alves. Exigente, como sempre, Chico vetou a música, alegando que Carmen não estava muito segura para cantá-la. Já no palco, Carmen tentava sinalizar para Assis Valente, que estava na plateia, tentando dizer que a música estava fora do espetáculo. Mas o destino faz das suas: o violonista Josué de Barros trocou a introdução e Carmen acabou cantando “Good bye boy”. Foi um grande sucesso. Carmen chamou ao palco Assis Valente e o apresentou como autor da obra. Surgia assim para o público o grande compositor. Com a composição “Good bye boy”, Assis Valente foi também o vencedor do concurso de músicas carnavalescas promovido pela Prefeitura.
Além das composições feitas especialmente para o período carnavalesco, era costume na época escrever músicas para outras comemorações populares significativas, como as festas juninas e natalinas. Assis Valente foi o primeiro que se lembrou da data magna. A inspiração surgiu quando o compositor estava longe da família na época do Natal. Assis estava triste. Em seu quarto havia um quadro típico de natal: uma menina olhando um sapatinho. Sentindo a própria solidão, ele pediu a Papai Noel vários presentes. No fim da tarde estava pronta uma de suas melhores composições: “Boas Festas”. A música foi gravada por Carlos Galhardo em 1933 e tornou-se o maior sucesso dos natais de todos os tempos.
Para as festas juninas compôs ainda “Acorda São João”, “Mais um balão” e “Olha o céu todo enfeitado”.
Entre os intérpretes de suas composições estavam Orlando Silva, Bando da Lua, Sonia Carvalho, Irmãs Pagãs, Jonjoca, Aurora Miranda, Nuno Roland, Moreira da Silva, Mário Reis e Francisco Alves. Assis Valente, porém, elegeu Carmen Miranda sua intérprete preferida. A “Pequena notável”, por sua vez, exigiu exclusividade. O compositor aceitou a proposta e compôs um sucesso atrás do outro. César Ladeira anunciava com antecedência, através da Rádio Mayrink Veiga, que suas músicas seriam interpretadas por Carmen Miranda, na época cantora exclusiva da emissora. Entre 1933 e 1940, a “Pequena notável” gravou 25 composições de Assis Valente. Entre elas, o samba “E o mundo não se acabou…”. A música é uma sátira aos boatos da iminência de catástrofes, guerras e o fim do mundo. O samba conta a história de uma pessoa que, tomada pela histeria coletiva, resolveu aproveitar ao máximo o tempo que ainda restava fazendo tudo que era censurado e proibido pela sociedade, sem culpa. Carmen também foi a responsável pelo sucesso dos sambas “Camisa listrada”, “Uva de caminhão”, “Minha embaixada chegou”, “E bateu-se a chapa”, “Isso não se atura”, “Recadinho de Papai Noel”, entre outros.
Mas a efervescência produtiva de Assis Valente, despertada e alimentada por sua admiração à Carmen Miranda, sofreu um forte golpe. Em 1939, a musa do compositor foi para os Estados Unidos.
Acostumado a renascer sempre, Assis continuou a compor. É dessa época, a marcha “Noite Azul”, gravada por Dircinha Batista e Irmãos Tapajós; o batuque “Cai sereno” e o samba choro “Coração que não entende”, gravados por Nuno Roland.
Em 1940, quando Assis Valente soube que Carmen viria ao Brasil, compôs dois sambas para a Pequena Notável: “Recenseamento” e “Brasil pandeiro”. Os dois sambas mostram características do povo brasileiro. “Recenseamento” foi inspirado pela decisão do então Presidente Getúlio Vargas de realizar um censo para conhecer melhor a população brasileira. Mas nem o povo sabia bem o que era aquilo, e nem os recenseadores conheciam a realidade social dos brasileiros. Assis compôs uma música bem divertida e irônica. Carmen gostou do samba e gravou.
“Brasil pandeiro” é uma exaltação à música brasileira e uma referência ao sucesso de Carmen, que conquistou os americanos. Dizia que depois de provar o “tempero da Baiana”, o Tio Sam queria conhecer a nossa batucada. Carmen recusou-se a gravar o samba por não acreditar em sua aceitação pelos americanos. Assis Valente ficou profundamente decepcionado com a cantora. Considerou a recusa uma desfeita da qual nunca esqueceu. O samba foi gravado pelo conjunto Anjos do Inferno e foi um grande sucesso.
A decepção com Carmen Miranda marcou o início de uma nova fase na carreira do compositor. Suas músicas foram deixando de ser gravadas e tocadas no rádio. Os intérpretes que ainda gravavam suas canções não conseguiam o mesmo êxito. Um dos raros sucessos dessa fase foi o samba “Fez bobagem”, gravado por Araci de Almeida. Em 1943, Carmélia Alves estreava no disco com o divertido “Quem dorme no ponto é chofer”. Em 1955, foi a vez de Luiz Vieira descobrir o compositor. Ele gravou duas músicas de Assis: a toada “Sodade Furadera”, escrita em parceria com Abreu Junior, e o samba “Viva a Penha”, em parceria com Joswaldo Dantas.
Nessa época, Assis Valente parava frequentemente de compor, dedicando-se inteiramente ao laboratório de prótese dentária. Seu humor flutuante refletia-se em todos os aspectos da sua vida e assim foi se afastando cada vez mais do meio artístico e dos amigos. Aos problemas pessoais, somavam-se as mudanças ocorridas no meio musical brasileiro. A invasão de ritmos estrangeiros e a grande influência do jazz faziam com que o estilo de Assis Valente ficasse em segundo plano. O compositor ainda tentou se adaptar às mudanças e escreveu uma música na qual o conjunto “Quatro Ases e um Coringa” introduziu uma interpretação jazzística. Foi o último sucesso de Assis Valente. O samba “Boneca de pano”.
Assis Valente teve algumas outras músicas gravadas, porém, sem grande repercussão. Cada vez mais triste, recolhido e solitário, foi se afastando das atividades de músico e de protético. No fim da década de 1940, precisou ser internado devido a uma doença nervosa que o deixou paralítico temporariamente. Após a alta, foi à Bahia pagar uma promessa ao Senhor do Bonfim. Retornou ao Rio, mas não conseguiu se reequilibrar. Continuou o trabalho no laboratório de prótese dentária e compunha muito pouco. No dia 11 de março de 1958, Assis Valente tirou a própria vida. Uma de suas últimas composições foi gravada alguns dias antes pelo cantor Jairo Aguiar. Foi o samba “Lamento”. A letra refletia o momento de profunda tristeza do autor: “Felicidade, afogada morreu. E a esperança foi ao fundo e voltou. Foi ao fundo e voltou. Foi ao fundo e ficou”. E assim ficamos sem Assis Valente.